ago
21

Arquitetura do movimento

posted on agosto 21st 2014 in artigos with 0 Comentários

ondas02

Vivo em uma cidade prisão! Seu nome? São Paulo!

Dizem que por aqui existe um dos melhores cursos de arquitetura do mundo! Acho que sim, mas fico imaginando se esses profissionais estão sendo ouvidos em suas sugestões arquitetônicas e urbanisticas para melhorar a vida nas metrópoles. A pesquisa de materiais, soluções arquitetônicas e urbanísticas mais humanas, ecológicamente corretas e harmoniosas tem sido apresentadas. Mas de nada têm adiantado.
O argumento utilizado para não desenvolver tais projetos sempre é o fator financeiro!

Mas esse é um argumento questionável, pois a saúde da população fica prejudicada quando não há uma visão ética/estética do espaço a ser ocupado pelas pessoas e o valor não investido na “causa” acaba sendo duplicado no “efeito”. Não vamos entrar no mérito dos materiais recicláveis que não são utilizados e da responsabilidade sócio-ambiental que não existe na maioria das empresas e órgãos públicos nessa cidade.

Vocês já visitaram São Paulo? Aqui convivem bairros de inimaginável sofisticação arquitetônica, com favelas de inimaginável pobreza. Miseráveis mesmo! O argumento, já gasto, de que isso é fruto do capitalismo selvagem que mantém mão-de-obra barata, não alivia a vida de quem convive com essa cruel realidade. Mas o fato é que o Brasil possui uma das piores distribuições de renda do planeta, se não a pior, fomentando com isso uma indústria da pobreza.
Os que ficam fora da festa (a maioria), quando submetidos ao caldeirão que são as cidades contemporâneas, reagem à altura. O fenômeno é mundial. Aqueles que foram banidos da festa do consumo reagem e ações violentas tomam o lugar das reivindicações que não são ouvidas.
Aqui, o caos está instalado. A maior cidade da América Latina, com quase dez milhões de habitantes e sua vizinha o Rio de Janeiro, vivem uma degradação ambiental, social e urbanística: ênfase no transporte individual, falta de áreas verdes, especulação imobiliária, poluição e violência.

Essas condições produzem algumas aberrações arquitetônicas. Luxo ao lado do lixo. Edifícios sofisticados junto à favelas que muitas vezes apresentam construções originais digna de um Gaudí.
Há algum tempo, disseminou-se pelas capitais brasileiras a idéia de que com a utilização de equipamentos ditos de segurança poderiam conter a fúria da urbe menos favorecida. Assim mudaram rapidamente a paisagem cosmopolita. Os muros cada vez mais altos e com lanças pontudas, possuem farpas de “alta tecnologia”. Os antigos nós dos arames farpados foram substituídos por lâminas mortais que cortam dos dois lados.

Não vou falar das câmeras de “in-segurança” que até hoje não impediram assaltos; dos seguranças particulares; da indústria do medo, das portas giratórias dos bancos que impedem a passagem de velinhas inofensivas. As grades cercam todas as habitações, edifícios, condomínios e parques transformando São Paulo em uma enorme prisão. Para entrar em seu próprio edifício o porteiro aperta um botão que abre a primeira porta-grade que finalmente dará acesso ao saguão, devidamente equipado com câmeras. Toda santa vez que você sair de seu prédio irá ficar por alguns segundos preso entre essas duas grades, os que saem de carro não escapam do mesmo esquema.
Os moradores gostam….Se sentem seguros… E não perceberam que apesar do alto investimento o assaltante quando resolver agir, aponta o revólver ainda na rua para a cabeça do funcionário do condomínio, ou aborda o morador do prédio na entrada da garagem e pega carona com o mesmo, que ameaçado, pede desesperadamente para desligarem alarmes e demais equipamentos.

Os arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan apresentaram na bienal 2002 de São Paulo a exposição “Happyland vol.2” ironizando a neurose e o consumo desenfreado dos itens de segurança. Havia instalações como um muro que ao invés de cacos de vidro ou lanças tinha revólveres apontados para a rua que caso necessário, atingia mortalmente o ladrão – sem sujar a calçada! Ou um muro residencial, cuja altura é regulada de acordo com os índices de violência do dia. O objetivo deles é tirar as pessoas do estado anestesiado em que se encontram para os absurdos da realidade desta cidade.

Ítalo Calvino, em seu livro “As cidades invisíveis” ,alerta para as cidades que faz você ver aquilo que ela quer que você veja. São Paulo é hábil em lhe mostrar progresso e modernidade tentando esconder a miséria e o sofrimento da população. O Rio de Janeiro quer que você acredite que ela ainda é a Cidade Maravilhosa, tentando disfarçar a guerrilha urbana que ceifa mais vidas do que a guerra do Iraque.

Assim como a dupla de arquitetos citados acima, há muito que a Cia. Artesãos do Corpo/Dança-Teatro (desde 1999), pesquisa uma linguagem que possibilite o diálogo da dança com a cidade, provocando a reflexão das pessoas através de intervenções sutis. Assim começou a pesquisa do primeiro espetáculo do repertório da companhia Espasmos Urbanos e a instalação coreográfica de rua: Olhar Urbano que consiste no deslocamento o mais lento possível dos intérpretes da companhia em locais movimentados.

Nossa linguagem se baseia nos princípios de um arquiteto/artista plástico e estudioso das motivações que levam as pessoas a se moverem. Difícil defini-lo por uma só função. Ele foi um pesquisador completo, a frente de seu tempo.

Seu nome: Rudolf von Laban.

A arquitetura de um lugar ou de uma cidade pode estimular ou impedir os movimentos declarava ele. O que pretendemos com a supervalorização das linhas retas e dos planos verticais nas metrópoles ditas modernas em contraste com a originalidade proposta pelos moradores dos bairros periféricos e favelas, ainda que as condições de higiene, saúde e segurança sejam precárias? Será que temos consciência dos efeitos que isso traz para a sociedade e consequentemente para o corpo? Não será isso também um problema da esfera do meio ambiente?
Posso afirmar com convicção que a arquitetura de uma cidade reflete a ideologia de seus governantes e o que a sociedade está valorizando em um determinado momento, indicando como se encaminha para o futuro.

Rudolf von Laban (1879-1958) nasceu na Bratislava, antigo império Austro-Húngaro e a partir de seus estudos e sistematizações sobre as motivações que leva os homens a se movimentarem foi considerado o “pai” da expressão corporal. Sua formação acadêmica o leva a se deter nas formas geométricas criando um sistema que abre caminhos às possibilidades de movimentação em um espaço-tempo determinado.
Laban cria as bases para uma dança inclusiva, pela qual qualquer pessoa está apta a realizar sua coreografia, indo contra as técnicas de dança tradicionais, onde um corpo específico é requerido para se submeter a um treinamento visando apenas um resultado estético.
Em seu livro Domínio do Movimento, encontramos a afirmação: o movimento é a manifestação exterior de sentimentos internos. Laban antecipa possibilidades de investigação do movimento por outras áreas do conhecimento e atenta para a natureza simbólica dos mesmos.

Seus estudos sugerem e incluem um constante diálogo entre as artes (instalações, performances, teatro, etc…) e as explorações propostas por ele levam a conectar corpo, mente e emoções. Para ele, o movimento não possui uma ordem lógica, deixando a cargo de quem o executa uma possibilidade infinita de pesquisa sobre as maneiras do corpo se organizar, indo contra toda forma de represar o movimento ou coloca-lo sob regras rígidas.

Em seu desejo de progresso científico, vislumbra a interação entre as ciências e as artes. Sua relação com a matemática, a arquitetura, a natureza o levam ao conceito de Harmonia Espacial, cujo tema é o corpo no espaço ou como o ser humano se relaciona com o espaço. Fala do corpo humano “em termos de arquitetura tridimensional: comprimento, profundidade e largura do corpo, além dos eixos vertical, horizontal e sagital – a Cinesfera – o espaço pessoal que envolve o corpo e que oferece um modelo para o espaço geral. “O movimento é uma arquitetura viva e segue as mesmas leis de proporção nas suas partes que equilibra o todo” ( Dominio do Movimento). Encontra a Proporção Áurea no Icosaedro e nos movimentos cotidianos.

Sem a noção de espaço não há desenvolvimento, dizia Laban. Seus estudos se referiam aos espaços arquitetônicos e os efeitos que causam na maneira das pessoas se movimentarem. Introduz o conceito de arquitetura corporal e arquitetura do espaço, em que “o corpo modifica e é modificado pelo espaço ao seu redor”. Utiliza o conceito da Banda de Moebius (oito invertido) pelo qual qualquer análise deve levar em consideração a idéia de que não existem lados e oposições, mas tudo está em constante movimento transitando ao mesmo tempo entre dentro e fora. A Lamniscata ou Banda de Moebius pode ser aplicada a qualquer área do conhecimento ou investigação e aqueles que a adotam fogem do maniqueísmo que uma visão dualista do mundo trás, indo ao encontro de uma visão sistêmica.

Laban não cria um método, mas um sistema que deixa ampla margem de ação para aqueles que adotam seus conceitos em suas áreas de atuação. Os ensinamentos desse incansável pesquisador vão muito além. Seu sistema de notação do movimento antecipa softwares que apenas recentemente foram desenvolvidos. Atualmente acredito que Laban estaria revendo seus conceitos sobre corpo no que tange a velocidade e espaço, bem como os espaços virtuais, o corpo desterritorializado, o corpo que se joga no ar.

Pensando nas proposições de Laban vamos olhar São Paulo mais uma vez.
Cidades como São Paulo, verticais e sem recantos ou “redondos” convidam ao pragmatismo, à velocidade e a corpos que não mais ficam nas ruas: que correm para casa assim que possível. Nos edifícios corporativos existe uma tendência a destinar amplas áreas que unem um complexo ao outro com a falsa intenção de humanizar o aço e o concreto. Esses lugares abrigam plantas ornamentais que não serão olhadas e se você experimentar sentar ou se deter ali um segurança virá alerta-lo de que é proibido ficar neste local.

As linhas suaves, redondas que compõe recantos e não cantos como os ângulos das megalópoles, foram banidas principalmente na parte do Brasil onde habitamos. Casas ou edifícios históricos são demolidos, muitas vezes se transformando em estacionamentos, tirando do povo seu direito a memória.

Mesmo nesse cenário hostil as pessoas conseguem desenvolver suas vidas e não raro vemos plantas nascerem literalmente do asfalto. Mais uma vez Ítalo Calvino em Cidades Invisíveis, fala sobre seu fascínio pelo símbolo complexo da cidade, pois ele lhe permitia maiores possibilidades de exprimir a tensão entre a racionalidade geométrica e o emaranhado das existências humanas.

A racionalidade geométrica do MASP – Museu de Arte de São Paulo, consegue acolher belamente essas existências: possui um enorme vão livre onde as pessoas podem se abrigar, sentar, namorar, sem ter que consumir algo (a arquiteta Lina Bo Bardi foi responsável pelo projeto). É um dos locais preferidos da Cia Artesãos do Corpo para realizar suas pesquisas de movimentos na rua.

Que mensagens Laban deixa para arquitetura e para as artes cênicas?

A mensagem de que não existem espaços vazios! “O que existe é uma ordem cósmica natural e a presença do movimento em todos os aspectos da vida. Esqueça qualquer idéia de estabilidade ou mobilidade completa: o equilíbrio é o resultado de duas qualidades contratantes da ação”.

Mirtes Calheiros

Mirtes Calheiros. Socióloga, bailarina, diretora da Cia. Artesãos do Corpo/Dança-Teatro, coordenadora artística do Festival Visões Urbanas(SP) e diretora do Estúdio Artesãos do Corpo (espaço de formação e criação em dança e teatro) www.ciaartesaosdocorpo.art.br

Santos, Milton – Edusp 2003 – Economia Espacial
Santos, Milton – Edusp 2004 – Por uma outra globalização
Santos, Milton – Publifolha 2002– O país destorcido
Laban, Rudolf – Editora Summus – Domínio do Movimento
Calvino,Italo – Cia das Letras – As Cidades Invisíveis

Mirtes Calheiros

We would love to hear your comments