Tempo Suspenso – primeiros registros
Para organizar as idéias sobre o projeto Tempo Suspenso foi necessário um estudo prévio sobre a realidade das pessoas em situação de refugio atualmente na cidade de São Paulo, além de um contato regular junto às instituições envolvidas nas questões relacionadas ao tema do refugio.
Aquilo que nos tocou profundamente ainda em solo Lusitano (frequentes naufrágios de navios africanos e sírios rumo à Europa) , deveria ter um preparação antes mesmo de começarmos nossos ensaios.
Assim fizemos, como sempre, de comum acordo com o elenco da Cia. Artesãos do Corpo, decidimos que levariamos adiante tal empreitada artistica com ou sem apoio financeiro.
Esses breves relatos se referem à esse tempo de preparo e inicia uma série de escritos sobre a primeira fase do projeto “Tempo Suspenso” contemplado pelo 18o edital de Fomento à Dança para cidade de São Paulo.
As primeiras impressões:
Carta de um domingo de Carnaval, 15 de fev 2015
A dificuldade de trabalhar com um tema tão amplo e revelador do mundo em que estamos metidos sem que nos disponhamos a mudar habitos e modos de viver se apresenta logo nos primeiros contato com a realidade dos refugiados.
Visitando os centros de acolhidas encontramos pessoas em situação de refugio ou imigrantes humanitários que de mãos atadas nos olham como se fossemos levar alguma resposta ou esperança de ajuda. Temos a sensação que qualquer movimento é falso perto da dor, solidão e desamparo que testemunhamos.
Aos poucos vamos descobrindo tantos e tantos campos de refugiados pelo mundo, tantos e tantos sem nada. Tantos que chegam na cidade: os que fogem da Guerra, da fome, da perseguição.
A natureza e nós caminhamos pro beleléu, só pra ficar nos dias de carnaval que correm.
A ultima visita à Pastoral , numa sexta feira de carnaval, foi triste, muito triste. Encontramos novamente Padre Atenor que após uma noite sem dormir se dividia em mil (cozinhando macarrão numa enorme panela para os moradores da casa que abriga refugiados, falando com a SABESP para liberar água para a Casa do Migrante e ainda com disposição para nos mostrar a Igreja da Paz e os afrescos de Pennachi) e muitos imigrantes acomodados pelos espaços vazios, entre os arcos, escadas, esperando….
Eram muitos. Muitos que chegam com a noite – dias de tantas emergências.
Por hora seria muito bom que ajudassemos a preparer pelo menos o café ou a salchicha santa de cada dia. Mais uma visita dessas e me ponho a ajudar a Pastoral.
A igreja da Paz, lá estava, muito limpa e silenciosa. Olhei novamente os afrescos de Pennachi, tentando entender o que tudo aquilo tinha a ver com tudo aquilo lá fora. As santas da América Latina, outra expoliada, lá estão com seus mantos e cabelos naturais.
Vimos novamente as fotos dos primeiros padres da ordem Escalabriniana que desde muito se dedicam ao auxilio de exilados, imigrantes, migrantes e refugiados.
Não tive coragem de pedir para ensaiar. E mesmo que tivesse, onde? Em meio a tantos acomodados no chão?
Seguimos..
beijos à todos meus amigos nessa viagem
mirtes
A Dor do MA
(E-mail à Michiko Okano orientadora e pesquisadora MA no projeto Tempo Suspenso)
Aprendi que o MA também é um entre espaço de dor.
Aos poucos vamos construindo cenas, experimentado algumas seqüências, (embora ainda seja cedo para tal) e deixando muito espaço para insights e acasos. Estamos trabalhando movimentos que remetem à acontecimentos ou lembranças do passado ou premonições de repetições no futuro. O presente? espero que seja o MA.
“… o que aqueles a quem falamos e vemos nos dizem, daqueles que não falamos e não vemos” Marc Augé, Não Lugares
As histórias que ouvimos e ainda escutamos ou lemos, se misturam. As cenas que presenciamos nas instituições ficam cada vez mais intensas. A Pastoral quase não tem mais lugar para ninguém. Aquele espaço da entrada está totalmente ocupado pelas pessoas que não param de chegar diariamente. Continuamos comendo coxinhas e kibes com nosso amigo sírio M. que nos presenteia com muitos doces tipicos de seu país.
Sabemos que as tragédias não podem ir ao palco. Seria um desrespeito. Como falar de crianças que morreram lentamente em frente a médicos desesperados, sem nada poder fazer pois foram expostas a armas químicas que expelem cloro?
Caminhemos.
Casa do Migrante no complexo da Pastoral do Imigrante
Encontro com Marcia assistente social da Casa do Migrante
O lugar é impressionante. Me refiro à todo o complexo – um quarteirão murado – que compreende a Casa do Migrante, o Centro Estudos Migratórios CEM (voltado para a Academia), o Centro Pastoral e de mediação e a Igreja da Paz (Paróquia Italiana, Anglo Latina e uma vez por mês tem missa em Francês). As casas se comunicam mas possuem regras próprias. A Pastoral recebe imigrantes que possuem visto humanitário (é o primeiro lugar em que se entra). A Casa do Migrante, com arquitetura italiana, recebe refugiados, com capacidade para até 110 pessoas. Ainda me parece que o termo refugiado ou imigrante está um tanto borrado, mas talvez com a vivência ficará mais claro. Para entrar na Casa vale tudo segundo Marcia: mentir, dizendo que matou toda a família (acho que é brincadeira dela), vir por iniciativa própria por não encontrar sentido onde vivem já que perderam toda a família, desejo do desconhecido ou os casos mais graves de repressão psiquica pela guerra constante em seu pais de origem ou por questões de perseguições que colocam a vida em risco.
De qualquer forma, o que se lê quando se procura refugiado não é o que corresponde à realidade da Casa.
Marcia é assistente social e está lá há 14 anos. Super falante, até já se parece com uma Síria, embora seja brasileiríssima. Usa termos emocionantes como: ao chegar o imigrante grita pela pele, ou quem trabalha com pessoas em situação de refugio também precisa ser cuidado. Ela parece ter um trabalho muito preciso junto às pessoas que trabalham com os imigrantes: cozinheiras, porteiros e monitores, pois muitas vezes essas pessoas não compreendem, ou esquecem a situação em que se encontram aqueles que estão distantes de tudo que fazia sentido em suas vidas.
Ao chegar na casa eles podem guardar seus pertences num armário com chave e as malas maiores num depósito. Ficam alojados em quartos coletivos, separando homens de mulheres e crianças. Às 7 da manhã devem deixar a casa e só podem voltar após as 16 ou 17h, quando vão jantar. Aqueles que estão estudando podem chegar mais tarde. Aos domingos podem ficar o dia todo por lá.
O que eles fazem quando estão fora da casa?
Uma curiosidade: os primeiros imigrantes a chegar na casa foram 2 Vietnamitas ( ?).
Imagine que “amarrar o passo” significa que o imigrante não vai sair de lá tão cedo, ou porque não quer ou porque é exigente, como os francófonos que não aceitam qualquer coisa. Já os Haitianos são mais aceitos e os Africanos, mais arrogantes e são evitados por aqueles que procuram os equipamentos para oferecer trabalho.
Ali é um mundo a descobrir. Imagine que terças e quintas, há uma palestra da Pastoral dirigida aos empresários que querem contratar os imigrantes. Queremos ver isso de perto.
Às quintas, é o dia de lavar roupa. Há o dia dos homens e o dia das mulheres. Eles entram pelo portão de ferro, recebem um pedaço de sabão e vão para os tanques.
A casa foi criada pelo padre João Batista Escalabrini, considerado o apóstolo dos imigrantes. O lugar é muito limpo e impessoal. Não quero me apressar mas a primeira impressão é de um lugar triste. Mas como no horário estava praticamente vazio, ficamos com essa impressão.
Minha idéia é realizar algumas visitas não só nos equipamentos do complexo, como no entorno que é terrivel! Fazer uma residência está nos nossos planos, mas primeiro queremos visitar mais vezes até decidirmos por uma estratégia. Não é proibido falar com os imigrantes, mas na Casa especificamente é melhor que seja de uma forma indireta, uma vez que muitos jornalistas e estudantes estão lá quase que diariamente assediando os moradores.
Outras informações nos foram passadas mas o mais importante foi ter obtido um salvo conduto para frequentar os ambientes mais à vontade.
Na última Bienal de São Paulo havia a obra de uma artista que preocupada com o desaparecimento da arte árabe, criou “estruturas para sombras perdidas”. Segunda ela, algumas obras de arte começaram a perder suas sombras” . Obra repleta de MA. Edward Krasneski, cujas composições no espaço capturam o MA também merecem um olhar mais detalhado. E Tony Chakar que capturando imagens de cidades vazias, descobre as pessoas “entrando” nas fotos.
Mirtes Calheiros
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